Na Unidade Básica de Saúde (UBS) Ildefonso Pedroso, a equipe "Ipê Branco" organiza cadeiras em círculo. A cena, que se repete em milhares de postos de saúde por todo o Brasil, é a linha de frente de uma batalha crucial e silenciosa. Ali, não se combate um inimigo estrangeiro, mas duas das doenças que mais matam e incapacitam no país: a hipertensão arterial e o diabetes. O encontro do Grupo Hiperdia, mais do que uma simples reunião, representa a essência da Atenção Primária à Saúde (APS) e uma estratégia vital para a sustentabilidade do Sistema Único de Saúde (SUS).
Campo Grande, MS – O que à primeira vista parece um encontro de vizinhos é, na verdade, um sofisticado mecanismo de saúde pública em plena ação. Pacientes, em sua maioria idosos, mas com uma presença crescente de adultos jovens, compartilham suas experiências, medem a pressão arterial, verificam os níveis de glicose e, o mais importante, recebem orientação e fortalecem o vínculo com os profissionais de saúde que os acompanham. A atividade na UBS Ildefonso Pedroso é um microcosmo do Programa de Cadastramento e Acompanhamento de Hipertensos e Diabéticos, conhecido nacionalmente pela sigla Hiperdia.
Lançado pelo Ministério da Saúde no início dos anos 2000, o Hiperdia nasceu da necessidade de organizar o cuidado a portadores de doenças crônicas que, por sua natureza silenciosa, frequentemente levam a diagnósticos tardios e complicações devastadoras. A hipertensão, popularmente chamada de "pressão alta", e o diabetes mellitus são as duas condições crônicas de maior prevalência na população brasileira e representam os principais fatores de risco para doenças cardiovasculares, como o infarto agudo do miocárdio e o acidente vascular cerebral (AVC), além de serem as maiores causas de insuficiência renal crônica, amputações de membros inferiores e cegueira.
O Panorama de uma Crise de Saúde Pública
Para entender a magnitude da importância de iniciativas como a do Grupo Hiperdia, é preciso olhar para os números. De acordo com a pesquisa Vigitel Brasil 2023 (Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico), a prevalência de diagnóstico médico de hipertensão arterial no Brasil é de 26,6% da população adulta, com picos que ultrapassam 60% entre os idosos. Já o diabetes afeta cerca de 10,2% dos adultos brasileiros.
Traduzindo em números absolutos, estamos falando de dezenas de milhões de brasileiros convivendo com condições que exigem monitoramento contínuo. Quando não controladas, essas doenças geram um custo humano e financeiro colossal. Pacientes que sofrem um AVC ou infarto demandam leitos de alta complexidade, cirurgias de emergência e longos períodos de reabilitação. Aqueles que desenvolvem insuficiência renal crônica dependem de hemodiálise, um procedimento caro e desgastante, realizado várias vezes por semana.
É neste cenário que a Atenção Primária, a "porta de entrada" do SUS, mostra seu valor estratégico. O acompanhamento realizado na UBS, perto da casa do paciente, é a forma mais eficiente e humana de evitar que a doença progrida para seus estágios mais graves. É o conceito da prevenção e da promoção da saúde em sua forma mais pura: agir antes que o dano se torne irreversível.
Dentro do Grupo: Mais que Aferir, Acolher
No encontro promovido pela equipe Ipê Branco, a dinâmica vai muito além da aferição de sinais vitais. A enfermeira responsável inicia a conversa perguntando sobre as dificuldades da semana. Uma senhora relata a dificuldade de reduzir o sal na comida, pois "a comida fica sem gosto". Imediatamente, outra participante compartilha uma dica sobre o uso de ervas e temperos naturais, como alecrim e orégano, para realçar o sabor. Um senhor comenta sobre a importância de caminhar todos os dias e como isso o ajudou a diminuir a dose de seu medicamento, sempre com o aval do médico.
Essa troca de experiências entre pares é um dos pilares do sucesso desses grupos. O sentimento de pertencimento e a percepção de que não se está sozinho na jornada do tratamento são ferramentas terapêuticas poderosas. A adesão ao tratamento de doenças crônicas é um desafio global, e a sensação de isolamento é um dos principais fatores para o abandono da medicação e dos cuidados.
Os profissionais de saúde – médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem e, fundamentalmente, os Agentes Comunitários de Saúde (ACS) – atuam como mediadores e educadores. Eles desmistificam informações falsas, orientam sobre o uso correto dos medicamentos, explicam a importância de uma dieta balanceada e da prática regular de atividade física. Temas como saúde dos pés (essencial para diabéticos, para evitar feridas e amputações), saúde ocular e a importância de não fumar são abordados de forma cíclica e acessível.
"O grupo fortalece o que chamamos de autocuidado apoiado", explica uma enfermeira da Estratégia Saúde da Família. "Nós damos as ferramentas e o conhecimento, mas o protagonista do cuidado é o próprio paciente. Quando ele entende a sua condição e se sente seguro para gerenciá-la no dia a dia, com o nosso suporte contínuo, a qualidade de vida dele melhora drasticamente e o risco de uma internação hospitalar por complicação despenca".
A Estrutura por Trás do Cuidado: O Papel da Atenção Primária
O Hiperdia é a personificação da filosofia da Atenção Primária à Saúde (APS). Essa estratégia organiza o sistema de saúde a partir do território, ou seja, cada equipe é responsável pela saúde de uma população adscrita, que vive em uma determinada área geográfica. Isso permite uma proximidade e um conhecimento profundo da realidade daquela comunidade.
O Agente Comunitário de Saúde é a peça-chave dessa engrenagem. É ele quem visita as casas, identifica os pacientes com hipertensão e diabetes, muitas vezes antes mesmo de um diagnóstico formal, e os convida a participar das atividades na UBS. É ele quem percebe se um paciente está com dificuldade para buscar seus medicamentos ou se está faltando às consultas, agindo como uma ponte essencial entre a comunidade e a equipe de saúde.
Esse acompanhamento longitudinal – ou seja, ao longo da vida do paciente – é o que permite a prevenção de complicações. O médico da família não trata apenas a pressão alta; ele conhece o histórico do paciente, seu contexto familiar, suas condições sociais e de trabalho. Essa visão integral é fundamental para um tratamento eficaz. Ao garantir esse acompanhamento periódico e a dispensação gratuita de medicamentos essenciais (muitos deles disponíveis através do programa Farmácia Popular, cujo acesso é facilitado pelo cadastro no Hiperdia), o SUS evita gastos muito maiores com tratamentos de alta complexidade no futuro.
Desafios e o Futuro do Cuidado Crônico no Brasil
Apesar de ser um modelo de sucesso, o Hiperdia e a Atenção Primária enfrentam desafios significativos. O subfinanciamento crônico do SUS, a sobrecarga das equipes, a alta rotatividade de profissionais em algumas regiões e a necessidade de atualização contínua frente às novas evidências científicas são obstáculos constantes.
Além disso, as mudanças no estilo de vida da população brasileira, com o aumento do sedentarismo e o consumo de alimentos ultraprocessados, impulsionam um crescimento contínuo no número de casos de hipertensão e diabetes, pressionando ainda mais o sistema. A pandemia de COVID-19 também impactou negativamente o acompanhamento desses pacientes, que muitas vezes deixaram de ir às unidades de saúde por medo da contaminação, resultando em um descontrole de suas condições de base.
Contudo, a resiliência de iniciativas como a da UBS Ildefonso Pedroso mostra o caminho a ser seguido. A valorização da Atenção Primária, o investimento na formação e fixação de profissionais e a ampliação de ações de promoção da saúde na comunidade são as estratégias mais inteligentes e custo-efetivas para garantir a saúde da população e a sustentabilidade do nosso sistema de saúde.
O encontro no bairro se encerra com a marcação das próximas consultas e a promessa de se reencontrarem em breve. Para os participantes, não foi apenas mais uma manhã na UBS. Foi um ato de cuidado, de comunidade e de resistência. É a prova de que a saúde de uma nação é construída todos os dias, em cada bairro, através do vínculo insubstituível entre quem cuida e quem é cuidado. É a ciência da saúde pública se transformando em qualidade de vida, uma aferição de pressão de cada vez.